A cidade e seus personagens

(Imagem retirada do Google Imagem)

A garoa desce pela metrópole como um manto gelado cobrindo os rostos atormentados pelo cansaço de mais um dia de trabalho. O trânsito, só para variar, se torna caótico formando de imediato uma serpente que circula de forma sinuosa pelas ruas materializando um imenso cordão de luzes. Buzinas se fazem ouvir a quilômetros de distância anunciando mais uma noite complicada e servindo de infeliz profecia afirmando que todos chegarão muito tarde em suas casas. Nas imensas filas que se formam nos terminais de ônibus,expressões de aborrecimento, preocupação, raiva e revolta se mesclam aos olhares de fome voltados para o rapaz que prepara e vende os "churrasquinhos de gato" na esquina rivalizando com o quiosque que vende do outro lado da rua, salgadinhos e saquinhos de pão de queijo que fazem a alegria daqueles que têm uns trocadinhos para gastar.
Ônibus chega lotado, ônibus sai abarrotado de material humano empilhado uns sobre os outros e assim, sucessivamente, a tormenta do homem comum não tem fim. Nas estações de trem, o mesmo clima de sofrimento contido nos olhar, nos corpos encolhidos e envergados pelo vento gelado que vem do rio, pelo cheiro fétido que sobe dele denunciando a todos, sua morte lenta.
A chegada do trem traz mais sofrimento. O embate para se sair de dentro e para se conseguir entrar nele chega a ser a materialização de uma batalha grega. Homens embrutecidos se digladiam, se empurram, se xingam, urram toda sua ira diante dos mais fracos. Mulheres assustadas se desviam desses soldados anônimos e se escondem atrás das pilastras.
Na avenida que segue paralela à linha do trem, mais combates, agora através da velocidade e das manobras enlouquecidas de motoristas que despejam toda sua raiva no volante. Veículos domésticos, caminhões, motos, cada um à sua maneira, tentam mostrar sua potência, sua superioridade diante de seu companheiro de viagem nessa estrada marginal. Marginal sob todos os aspectos. E o frio aperta, gela, faz doer, faz arder pele, olhos, boca, garganta, alma.
E diante de toda essa tragédia diária, uma criatura quase etérea devido a sua magreza e palidez, brinca, dança, dá giros sobre si mesma, com seus pés descalços e encardidos. Canta de forma aguda uma ladainha sem palavras com os olhos embaçados. Ora rindo, ora gritando e afugentando os mais curiosos e desrespeitosos. Envolta num cobertor ralo e sujo, sente-se uma princesa dançando num imenso salão, tendo a noite escura e nublada como testemunha de sua alegria. Diz a todos que passam por ela fitando-a num misto de medo e curiosidade, que ela está feliz pois seu príncipe em breve chegará para levá-la ao reino de alegria e abastança. Pobre menina-mulher! Em seu delírio ocasionado pela fome, frio e crack, acredita que sua felicidade está próxima. A noite avança trazendo mais chuva e mais frio. A cidade amanhece cinzenta e triste.
Próximo a estação, além da movimentação constante do dia-a-dia, uma outra paralela acontece. Curiosos se juntam, se acotovelam para ver de perto a princesa da ponte que jaz ao solo gelado mantendo um sorriso de quem acaba de encontrar seu amor e um olhar vítreo de quem já não se encontra mais presente. Ela tinha razão. Em seus delírios, ela afirmava que seu sofrimento estava por terminar e que em breve, seu príncipe viria lhe buscar para levá-la ao seu reino. Ela só não sabia que seu príncipe era o enviado da Morte. E que só ela lhe traria o descanso desejado. Após a curiosidade saciada, as pessoas voltam à sua rotina, esquecendo dessa personagem e deixando-se levar pelas preocupações de mais um dia de trabalho. A vida segue.

Comentários

Mírian Mondon disse…
querida Roseli, uma triste historia contada de uma maneira comovente.
Só voce para conseguir tal proeza.
Parabens!
Pedrita disse…
um dia desses até coloquei um desktop de guarda chuvas de tanto q chovia. beijos, pedrita
Ana Luiza Chaves disse…
Roseli,

Lindamente trágico, coisas da vida mesmo. Parabéns pelo belíssimo texto.

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